Primeira árbitra do Brasil driblou machismo para estar em campo: ‘Se podemos ter um filho, não há nada que não possamos fazer’

(Esta reportagem faz parte de uma série especial do g1 para o Dia das Mulheres, celebrado nesta terça-feira, 8 de março, sobre Mulheres Pioneiras. Veja a série completa aqui)
Mas Lea Campos, hoje com 77 anos, conseguiu driblar o machismo da época, tornando-se a primeira árbitra do Brasil e pioneira no mundo.
Lea Campos driblou machismo e regras na ditadura, tornando-se pioneira na arbitragem feminina — Foto: Arquivo Pessoal/Reprodução/TV Globo
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“Ser pioneira é um privilégio, mas o mais importante para mim é ver que a árvore que plantei continua dando frutos, e espero que siga assim. Sempre digo que, se podemos ter um filho, não há nada que não possamos fazer”, diz.
Lea Campos, em 2019, em entrevista à GloboNews sobre o Museu do Impedimento — Foto: Reprodução/GloboNews
Muito antes de conquistar o direito de entrar em campo com apito na mão, Lea já se encantava com o futebol. Na infância em Minas Gerais, levava para a escola bolinhas de pano feitas pelo pai. Nessa época, aos 7 anos, ela já não se intimidava diante dos “nãos” de colegas que diziam que não poderia jogar. Pegava a bola e falava que iria embora. Bastava para que pudesse brincar com os meninos.
Com o passar dos anos, os “nãos” passaram a vir de autoridades. Em pleno regime militar, Lea chegou a ser presa por diversas vezes. Ela conta que juntava meninas para jogar, o que contrariava a lei. Quando a sirene soava e a polícia se aproximava, dizia para as garotas irem embora. E, assim como fazia quando criança, pegava a bola para si e assumia a responsabilidade de resolver a situação.
A mineira Lea Campos apaixonou-se pelo futebol ainda criança — Foto: Arquivo Pessoal
Torcedora do Cruzeiro, a paixão pelo futebol a levou para o jornalismo esportivo, com passagens por emissoras como a Rádio Mulher, Rádio São Paulo e TV e Rádio Nacional, em Brasília. O contato com o esporte fez com que se envolvesse ainda mais e se inscrevesse em um curso de arbitragem da Federação Mineira de Futebol (FMF).
Apesar do bom desempenho nas aulas, receber o diploma exigiu coragem para questionar as regras e enfrentar quem detinha o poder. Um adversário fora de campo foi João Havelange, que comandava a Confederação Brasileira de Desportos (CBD).
“Havelange foi enfático quando disse que, enquanto ele estivesse na CBD, hoje CBF [Confederação Brasileira de Futebol], mulher não atuaria no futebol e que o melhor era eu voltar para casa e arranjar um marido”, relembra.
O casamento viria anos mais tarde, com o colombiano Luis Medina. Escritor e jornalista, ele registrou a história dela na biografia “Las Reglas pueden ser Rotas” (As regras podem ser quebradas, em tradução livre do espanhol), livro lançado em 2001, nos Estados Unidos, onde o casal mora.
Durante a juventude, Lea Campos participou de diversos concursos de beleza. Em um deles, foi eleita Rainha do Exército — Foto: Arquivo Pessoal
Nas páginas de sua trajetória, Lea seguiu rompendo as barreiras que a impediam de chegar à grande área. Durante a juventude, participou de inúmeros concursos de beleza, ganhando diversos títulos de rainha. Um deles, no Exército, ajudou com que Lea conseguisse ir até a autoridade máxima do país na época, o general Emílio Garrastazu Médici, e questionar as regras do jogo, ou melhor, o decreto-lei de 1941.
O texto, que proibia que mulheres praticassem esportes “incompatíveis com as condições de sua natureza”, não fazia menção à atuação de mulheres como árbitras. E Lea soube como fazer o drible.
“Na época, eu era Rainha do Exército e vi no presidente Médici a chance de me ajudar. Tinha recebido um convite para apitar um mundial feminino no México e não poderia atuar como profissional por não ter recebido meu diploma me credenciando como árbitra. Médici era um amante do futebol e foi isso que me ajudou”, conta.
Diplomação de Lea Campos como árbitra foi notícia nos jornais da época — Foto: Reprodução/TV Globo
Segundo Lea, o general escreveu uma mensagem de próprio punho a Havelange, autorizando a atuação da mineira nos gramados. No início dos anos 1970, a diplomação como árbitra foi notícia de jornal. Ao longo da carreira, foram mais de cem partidas. A primeira delas, no Mineirão, numa disputa entre aspirantes do Cruzeiro e América.
“O último, se não me engano, foi Gil Vicente e Porto, em Portugal. Jogadores e torcida sempre me trataram com respeito e carinho”, diz.
Lea afirma que, dentro de campo, apenas uma vez sua atuação foi questionada por um jogador. Mas, fora dele, o preconceito vinha de onde não se esperava: das mulheres.
“Uma única vez, um jogador foi por mim expulso e se recusou a deixar o campo dizendo que mulher não mandava nele. Mas acabou cedendo e teve que sair sob as vaias da torcida do time dele e do adversário. Fora de campo, apenas as mulheres que diziam que lugar de mulher é no tanque”, relembra.
Em 1974, um grave acidente de ônibus fez com que a carreira fosse interrompida. Apesar do encerramento precoce do seu trabalho na arbitragem, o reconhecimento do papel pioneiro na área segue vivo décadas depois.
Em 1974, Lea Campos sofreu acidente que fez com ela interrompesse a carreira como árbitra — Foto: Reprodução/TV Globo
Há cerca de 30 anos, Lea se mudou do Brasil para viver nos Estados Unidos. Atualmente, ela e o marido moram em um apartamento alugado em Jersey City, em uma área de italianos. No início da pandemia, o casal passou por momentos difíceis e a ajuda veio de colegas árbitros, que fizeram uma campanha na internet. Lea diz que não imaginava ser tão amada no Brasil.
Luta continua
Dos anos 1960, quando começou a formação na arbitragem, até hoje, muitas mudanças ocorreram nos gramados. As mulheres, apesar de terem conquistado espaço, ainda caminham para uma presença igualitária.
Atualmente, segundo listagem disponível no site da CBF, dos 35 árbitros e assistentes brasileiros com escudo Fifa, 14 são mulheres, ou seja 44%. Levando em conta apenas árbitros, do total de 17, sete são mulheres, o que corresponde a 41%.
Às mulheres que pretendem seguir caminhos abertos por ela, o recado de Lea é de persistência, usando como metáfora um esporte que também atuou como mediadora: a luta livre.
“Sempre digo às meninas que querem entrar na arbitragem que a vitória é o resultado de luta, garra e persistência. E que nunca devem atirar a toalha antes de subir no ringue. (…) Me sinto feliz, vaidosa, satisfeita e super orgulhosa de tudo que ocorre com nossas meninas na arbitragem. Apenas acho que é necessário dar oportunidade igualitária”, afirma.
Busca por equidade
A professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e historiadora do futebol Diana Mendes também defende que a igualdade de gênero no esporte, dentro e fora de campo, seja garantida.
“Se as mulheres são mais de 50% na sociedade, elas têm que estar representadas em campo, na arbitragem, nos conselhos, como dirigentes, considerando essa proporção. Quando tiver equidade, podemos dizer que chegamos a um ponto de igualdade de gênero, mas ainda é insuficiente”, avalia.
Para a pesquisadora, o decreto-lei que atravessou as ditaduras da Era Vargas e do período militar trouxe reflexos não só para época, mas também para gerações que viriam.
Ela ressalta a importância do papel de mulheres, que mesmo com a proibição, continuaram nos campos, organizaram-se e se mobilizaram até conseguir reverter a legislação em 1979. Entretanto, por cerca de 40 anos, elas não puderam ter aportes financeiros nem visibilidade nos meios de comunicação, provocando inúmeros impactos.
Decreto-lei proibia a presença de mulheres em diversos esportes — Foto: Reprodução/TV Globo
“Os reflexos são vários porque quando se proíbe a prática, proíbe-se as mulheres que estão jogando naquele momento, mas, além disso, o desenvolvimento daquela modalidade. Parou de se investir recursos na modalidade e novas gerações não puderam se inspirar nas gerações pioneiras, já que não apareciam em público, nos estádios, na mídia”, diz.
De acordo com Diana, a partir dos anos 1990, o trabalho de pesquisadores e pesquisadoras no resgate da história das pioneiras e exemplos como o de Marta e de Formiga contribuíram para inspirar e também empoderar as novas gerações. Mas, para ela, é preciso mais.
Um dos caminhos, defende, seria a adoção de políticas públicas e institucionais que garantam a presença das mulheres em todas as esferas do futebol.
A historiadora destaca que a maior desigualdade atualmente é em relação à direção de clubes. “Quando se pensa em igualdade de gênero, são cargos de maior poder que têm maior concentração [da desigualdade]. A gente sabe historicamente que os dirigentes são sempre homens e homens brancos. É preciso criar mecanismos para que as mulheres possam se aproximar, concorrer e serem votadas”, afirma.
Apesar do caminho a ser ainda percorrido, a historiadora vê com otimismo o cenário futuro das mulheres no futebol.
“Eu sou sempre otimista. É certo que a gente tem uma condição política hoje, para dizer o mínimo, que não é favorável à busca de equidade. O cenário político é conservador e retrógrado, o quer dizer que não se quer abrir mão de privilégios. Mas o que se tem, em contrapartida, é um movimento de mulheres em relação à equidade de gênero, que faz frente ao conservadorismo”, conclui.
Autor: Globo.com