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Após seis meses de Lula, qual é o Brasil que voltou à cena?

Mas qual Brasil voltaria ao palco internacional ainda era, àquela época, uma imagem pouco clara – turvada pelo guarda-chuva abrangente de defesa da democracia, que marcou a campanha do petista, e pela alta expectativa de agentes políticos do Ocidente, que já conheciam Lula de seus governos anteriores e ansiavam por um aliado confiável na América Latina para ajudar a resolver problemas globais, como a mudança climática e a ameaça da ultradireita.

Seis meses após a posse do petista, que incluíram visitas suas a 12 países, a imagem está mais nítida.

O Brasil que voltou não é um aliado de toda hora do Ocidente, e isso ficou especialmente claro em declarações e ações de Lula sobre a guerra na Ucrânia, um evento histórico que renovou a importância da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e foi definido como uma virada de época pelo chanceler federal alemão, Olaf Scholz.

O Brasil também não está disposto a aceitar as novas condições ambientais da União Europeia (UE) para assinar rapidamente o tratado de livre comércio com o Mercosul, que pode criar a maior zona de livre comércio do mundo e oferecer aos europeus uma vantagem geopolítica diante da nova Guerra Fria entre Estados Unidos e China.

E, como nos dois primeiros governos Lula, o atual segue interessado em transformar a ordem mundial no sentido da multipolaridade e na redução da hegemonia de Washington. Desde o início do ano, o presidente brasileiro vem, por exemplo, manifestando o desejo de que o dólar deixe de ser a moeda de referência nas trocas comerciais entre países.

Por esses motivos, surgiram alguns sinais de decepção em países ocidentais com o petista. Reportagem publicada pelo jornal britânico Financial Times na última semana sobre uma campanha de bastidores feita em 2022 pela Casa Branca para pressionar políticos e militares brasileiros a respeitarem o resultado das urnas identificou ressentimento e fricção de autoridades americanas com Lula, sendo as críticas do petista ao dólar um dos itens mencionados.

Também na semana passada, o jornal francês Libération colocou Lula na sua capa, sob o título “Lula, a decepção”, dizendo que o brasileiro seria um “falso amigo do Ocidente” – especialmente pelo seu posicionamento sobre a guerra na Ucrânia.

Mesmo assim, o Brasil sob Lula segue sendo visto pelas potências ocidentais como um ator relevante e que deve ser ouvido sobre grandes questões como a mudança climática e a reforma das organizações internacionais, e o acordo Mercosul-UE ainda tem chances de acontecer. Entenda os principais pontos do que está em jogo.

Fora da disputa EUA-China

A principal diferença geopolítica entre o mundo que existia nos primeiros governos Lula, de 2003 a 2010, e o atual é a consolidação da China como superpotência e a reação dos Estados Unidos à ameaça de sua hegemonia.

Washington tem reagido às ambições de Pequim com ações concretas, como proibindo empresas americanas de venderem chips sofisticados para a China ou reforçando seu apoio à autonomia de Taiwan. Em outros países ocidentais, como a Alemanha, Pequim também é hoje vista mais como rival do que como parceira.

O Brasil tem laços profundos com os Estados Unidos, que é seu segundo maior parceiro comercial. Mas também tem interesses enormes na China, seu maior parceiro comercial e destino de quase 30% de suas exportações. Lula foi aos Estados Unidos em fevereiro, e à China, com uma comitiva maior, em abril.

Nesse embate, não interessa a Brasília assumir claramente um lado, diz Peter Birle, diretor científico do Instituto Iberoamericano (IAI) em Berlim e diretor alemão do Centro Mecila, um projeto de cooperação científica entre Brasil e Alemanha sediado em São Paulo.

“O governo [Joe] Biden está tratando de construir um mundo bipolar novamente, mas para o Brasil isso não traz ganhos. O governo brasileiro quer tratar com ambos”, afirma.

Estabilidade x transformação da ordem global

Outro movimento em curso na cena global é a consolidação de vozes críticas à governança atual de organismos internacionais como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional.

A criação dos Brics, que reúne Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, durante o governo anterior de Lula, indicou uma contestação a esse modelo, e hoje o grupo – apesar dos interesses muito heterogêneos entre seus membros – tem um banco internacional de fomento e é sondado por outras nações que querem aderir a ele.

“O Ocidente gostaria de ter o Brasil como um membro da sua coalizão, mas não é isso que o Brasil quer. Os Estados Unidos e a União Europeia estão pensando mais na estabilidade do sistema global atual, enquanto o Brasil e outros países têm muito mais interesse em mudanças”, diz Birle.

Para Günther Maihold, professor do Instituto de Estudos Latino-Americanos (LAI) da Universidade Livre de Berlim, as expectativas entre líderes do Ocidente depositadas sobre o brasileiro realmente eram “altas demais”.

“Havia a imagem de um ‘santo Lula’ que seria um novo amigo e aliado do Ocidente, e muitos esperavam que ele poderia fazer uma intermediação entre o G7 [grupo das sete democracias liberais mais industrializadas do mundo] e os Brics”, diz. Ao contrário disso, afirma, Lula tem sido cauteloso para não definir a presença internacional do Brasil nessa chave.

A reforma da governança global foi discutida em um encontro em Paris na semana passada, do qual Lula participou. O presidente francês, Emmanuel Macron, expressou alguma simpatia pela visão dos países do Sul Global em entrevista à CNN, e disse ver um risco de “divisão global”, acentuado pela guerra na Ucrânia, devido a uma dinâmica de “o Ocidente contra o resto” – promovida, segundo ele, “por alguns países importantes”.

O francês afirmou entender a crítica de alguns países de que haveria um “duplo padrão” adotado pelo Ocidente, que teria vultosos recursos para a guerra na Ucrânia, mas não tanto para o combate à pobreza e às mudanças climáticas. E pontuou que seria necessário um “novo consenso” mundial para evitar a criação de uma “ordem multilateral alternativa” com novos organismos internacionais.

Renegociação do acordo Mercosul-UE

Outro tema central da diplomacia da gestão Lula tem sido o acordo Mercosul-UE. O texto foi fechado em 2019 e ainda precisa ser ratificado pelos países-membros, mas há obstáculos.

O processo de ratificação foi paralisado durante o governo Bolsonaro, devido à preocupação dos europeus com o aumento do desmatamento da Amazônia e a pressão de setores da sua agropecuária receosos com a competição dos produtos do Mercosul.

Em março, a UE enviou ao Mercosul uma carta adicional pedindo a inclusão no texto de mais compromissos ambientais e sanções em caso de descumprimento. Além disso, em maio o bloco europeu aprovou uma nova lei antidesmatamento que proíbe a importação de produtos oriundos de áreas de florestas tropicais desmatadas após dezembro de 2020.

As duas iniciativas desagradaram o governo brasileiro, que considerou que elas alteram o equilíbrio do acordo ao criar mais obrigações apenas para um dos lados – exportadores brasileiros, por exemplo, teriam que comprovar que não houve desmatamento associado aos seus produtos e arcar com os custos de devida diligência.

Por outro lado, Lula também manifestou contrariedade com o item do acordo sobre compras governamentais, que autoriza empresas europeias a participar de licitações públicas nos países do Mercosul em condições de igualdade com as empresas locais. Segundo o brasileiro, isso prejudicaria as pequenas e médias empresas no Brasil.

O Mercosul deve enviar uma resposta à UE em julho. A secretária de Comércio Exterior do governo brasileiro, Tatiana Prazeres, afirmou ao jornal Valor Econômico que Brasília pretende negociar os critérios de devida diligência para reduzir os custos para os exportadores nacionais que pretendam cumprir as exigências dos europeus.

Ela também explicitou a dinâmica das negociações: após os europeus reabrirem o debate sobre o acordo com novas demandas ambientais, o governo brasileiro optou por “espelhar a abordagem” a reabrir o debate sobre compras governamentais.

Maihold, do LAI, diz que o Brasil não é o único país a criticar a lei antidesmatamento da UE, em função da forma como o bloco europeu definiu padrões que devem ser “impostos” a outros países sem oferecer espaço para a “negociação ou construção de consensos”.

Ele pondera que, além de aparar arestas com o Mercosul nesse ponto, faltará à UE construir consenso interno sobre o acordo, em especial diante dos produtores agropecuários de países como França e Áustria, que são mobilizados politicamente e críticos ao texto.

Birle, do IAI, é cético sobre a possibilidade de o acordo ser concluído neste ano, conforme é o desejo manifestado por Lula e pela presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen. “A França tem uma agricultura muito importante e militante, e não acho que a Alemanha vá arriscar um conflito com a França sobre o acordo com o Mercosul. Por outro lado, Lula diz que não quer aceitar a participação das empresas europeias nas licitações, mas isso será muito difícil pois faz parte do acordo”, diz.

Falas simpáticas à Rússia sobre Ucrânia

A postura de Lula sobre a invasão russa à Ucrânia é até aqui o ponto de maior estranhamento entre Brasília e os países do Ocidente. E isso se deve especialmente por declarações do petista, que em diversos momentos transmitiram uma proximidade maior ao agressor Moscou do que com a Kiev atacada.

A posição oficial do Brasil sobre a guerra é de neutralidade no conflito, no sentido de que o país não participa enviando armas ou munições. Ao mesmo tempo, Brasília defende o princípio da integridade territorial e é contra a violação de fronteiras internacionais, e foi o único país dos Brics a votar a favor de resolução da ONU pela retirada das tropas russas da Ucrânia.

No entanto, Lula, em mais de uma oportunidade, equiparou a responsabilidade da Ucrânia à da Rússia pelo início da guerra, e acusou os EUA e a UE de prolongarem o conflito no Leste Europeu, o que foi rebatido pela Casa Branca e por Bruxelas.

O petista também foi criticado por ter mantido contato frequente com o governo russo nos primeiros meses de seu governo, ao passo que só no final de abril decidiu enviar um representante a Kiev – apesar de Lula se apresentar como possível mediador do conflito.

Birle, do IAI, diz compreender a postura oficial de neutralidade do Brasil, coerente com sua tradição de política externa e pelo fato de a guerra na Ucrânia não representar para os brasileiros uma ameaça tão grande como para os europeus, mas critica as declarações do petista sobre o tema.

“Nunca esperaria uma participação ativa do Brasil nessa coalizão [pró-Ucrânia]. Mas há uma decepção quando Lula diz algumas coisas tomando mais parte da Rússia do que da Ucrânia”, afirma. “Entendo que ele não tem interesse em ter um conflito com a Rússia ou a China, mas algumas vezes seria melhor não dizer nada do que dizer muita coisa.”

A ministra do Exterior da Alemanha, Annalena Baerbock, em uma visita a São Paulo no início do mês, também disse compreender que a população da América Latina tenha percepções diferentes sobre os riscos causados pela invasão da Ucrânia pela Rússia, e que o conflito não esteja no topo das preocupações de muitos brasileiros que sofrem com alta do preço dos alimentos.

Mas ela aproveitou a ocasião para transmitir a posição alemã sobre o tema e a expectativa de Berlim de que os países latino-americanos adotassem uma posição mais ativa contra as ações da Rússia na Ucrânia. “Segurança e desenvolvimento não são opostos, são mutuamente dependentes. E se ignorarmos uma violação tão brutal da carta das Nações Unidas, a ordem internacional baseada em regras, então não apenas o agressor prevalecerá, mas o livre comércio também não terá mais chance”, disse.

A ida de Baerbock ao Brasil foi a mais recente de uma série de visitas de autoridades alemães ao país neste ano, que incluíram o presidente Frank-Walter Steinmeier, para a posse de Lula, e o chanceler federal Olaf Scholz e a ministra da da Cooperação Econômica e do Desenvolvimento, Svenja Schulze, em janeiro.

Para Maihold, do LAI, as declarações de Lula sobre a Ucrânia “não foram os melhores momentos da política externa brasileira” e “não contribuíram para o Brasil construir uma reputação para uma eventual mediação”.

“Acho que Lula está de alguma forma tentando manter uma solidariedade com a Rússia por ser membro do Brics, e ao mesmo tempo há uma crítica histórica aos países do Ocidente – mas isso acaba misturado em declarações que não ajudam.” Ele também não identifica que tipo de contribuição concreta Lula poderia dar para uma solução do conflito.

Calendário tem oportunidades, mas política interna traz riscos

Lula ainda tem pela frente 42 meses do atual governo, e contará com três oportunidades para projetar sua política externa. Em 1º de dezembro, o Brasil assumirá por um ano a presidência temporária do G20 [grupo das maiores economias do mundo mais a UE], e organizará uma cúpula do grupo no Rio de Janeiro em novembro de 2024.

Em 2025, Brasília exercerá a presidência dos Brics e também organizará uma cúpula. No mesmo ano, o Brasil sediará a 30ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP30), em Belém do Pará – e o tema ambiental é onde o Brasil tem, por essência, sua maior capacidade de projeção global.

No entanto, a resiliência de Lula em fóruns internacionais ainda está para ser provada. A novidade do Brasil está de volta já arrefeceu a esta altura, e o petista terá que mostrar resultados concretos de seu governo – que enfrenta um equilíbrio frágil com um Congresso mais poderoso e conservador do que nas suas gestões anteriores.

Maihold, do LAI, aponta que essa é uma diferença fundamental que influencia sua atuação externa. No período de 2003 a 2010, diz, Lula conseguiu projetar o Brasil no mundo a partir do sucesso doméstico de suas políticas sociais e econômicas. “Agora a situação é na direção inversa: Lula está tentando obter reputação internacional para, de alguma forma, facilitar a solução de seus problemas internos”, afirma.

“Há uma extrema polarização interna, o Brasil está em uma situação de baixo crescimento e o que ele está oferecendo à comunidade internacional não necessariamente conseguirá implementar. Vimos isso no marco temporal das terras indígenas”, disse. “Ele precisa conseguir lidar com a situação interna, senão será deslegitimado no âmbito externo.”


Autor: Isto é Dinheiro

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